sábado, 20 de setembro de 2014

Fugindo do moedor de carne

Somente a disciplina, característica ligada à virtude da moderação, pode nos livrar de termos nossos sonhos tragados pelo ritmo frenético do cotidiano

 por Lilian Graziano
Imagem: Shutterstock 
Dizem que uma das medidas da realização humana seria um conjunto de três ações distintas: conceber um filho, escrever um livro e plantar uma árvore. Nesse sentido, comecei cedo. Tornei- -me mãe aos 20 anos e, apesar da pressa em relação à maternidade, demorei mais 20 anos para plantar uma árvore. Foi no meu aniversário de 40 anos que decidi me dar de presente uma jabuticabeira, não sem o cuidado de comprá-la já adulta, a fim de fugir da conhecida lenda que, baseada no lento crescimento da árvore, diz que aquele que planta uma jabuticabeira nunca chega a comer seus frutos. Tenho dúvidas em relação a se deveria tê-la plantado a partir da semente para que o ato fosse "oficialmente" julgado como indicativo de realização. Talvez tenha "trapaceado" nesse quesito, mas me sinto confortável em relação a ele.
Meu desconforto, por outro lado, diz respeito ao livro. Tecnicamente, tenho um livro publicado, embora não no mercado brasileiro. Fiquei contente quando recebi um convite de uma editora alemã para que minha tese de doutorado fosse transformada em livro e vertida em Inglês para lançamento no mercado estrangeiro. Mas, talvez, por se tratar da minha tese, eu não a veja como um livro. Assim sendo, fiquei com essa pendência em relação à minha realização.
É quando entra em cena o famoso "moedor de carne". Para quem ainda não conhece a expressão, segue a descrição que levará o leitor, tenho certeza, à construção de uma imagem que lhe fará se dar conta de sua total intimidade com o drama descrito por ela.

LIGAMOS NOSSO METAFÓRICO MOEDOR DE CARNE EM VOLTAGEM 220, TODOS OS DIAS, PELA MANHÃ. EM SEGUIDA, ENTRAMOS DENTRO DELE (ISSO MESMO! DENTRO DELE!) E LÁ PASSAMOS O NOSSO DIA, TRAGADOS POR SEU RITMO FRENÉTICO E IMPLACÁVEL
Ligamos nosso metafórico moedor de carne em voltagem 220, todos os dias, pela manhã. Em seguida, entramos dentro dele (isso mesmo! Dentro dele!) e lá passamos o nosso dia, tragados por seu ritmo frenético e implacável. Depois, à noite, os mais saudáveis conseguem desligá-lo, saindo dele antes de dormir. Os mais "comprometidos" sofrem com insônia e/ou sono agitado, sinal de que seus moedores continuam funcionando e - o pior - de que permanecem dentro deles.
Vejo esse "moedor de carne" como um de nossos piores inimigos. E, infelizmente, saber de sua existência nem sempre garante que eu não seja uma de suas vítimas. Foi por causa do moedor de carne que, até hoje, não concluí meu livro teórico sobre Psicologia Positiva, uma eterna pendência na área de trabalho do meu computador.
No início deste ano, fui surpreendida pela sugestão de uma amiga para que eu "publicasse" um livro de Psicologia Positiva que não fosse teórico, mas, sim, que mostrasse a vida a partir do olhar da Psicologia Positiva. Achei a ideia bastante interessante, mas lembrei a ela que antes de "publicar" o tal livro, eu precisaria escrevê-lo, o que meu moedor de carne, definitivamente, não permitiria. Sobretudo neste ano.
Foi quando ela me disse que eu já havia escrito o livro. Segundo ela, o tinha feito ao longo dos últimos quatro anos em que mantive minha coluna Psicopositiva na revista Psique Ciência&Vida. Minha amiga tinha razão. Sem que eu me desse conta, a disciplina de manter uma coluna mensal havia me levado à realização de produzir um material que poderia ser transformado em livro.
Não pude deixar de notar que para fugir do moedor de carne só nos resta a disciplina. A mesma disciplina tão desafiadora para quem tem o autocontrole como sua 24ª força pessoal...
Imagem: Shutterstock

Lilian Graziano é psicóloga e doutora em Psicologia pela USP, com curso de extensão em Virtudes e Forças Pessoais pelo VIA Institute on Character, EUA. É professora universitária e diretora do Instituto de Psicologia Positiva e Comportamento, onde oferece atendimento clínico, consultoria empresarial e cursos na área.
graziano@psicologiapositiva.com.br
 Fonte:http://portalcienciaevida.uol.com.br/esps/Edicoes/103/artigo323787-1.asp


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